|
.....O fato é que, quando o buraco passou dos mil e tantos metros, a água brotou das profundas da terra, sulfurosa, quente de escaldar, irrompendo céu acima como um “geyser”. E é um “geyser”. Artificial, mas “geyser”. Passado o assombro daquela explosão líquida, mandaram examinar a água e viram que era medicinal. Não só pela composição química, mas pelo calor mágico, diz o povo. Sei que ali, em pleno sertão baiano, na hoje famosa bacia de Tucano, onde depois se encontrou petróleo mesmo, nasceu uma estação termal. Tudo em proporção modesta, estação d’águas para gente pobre. Nada de palaces, mas aquelas imensas hospedarias abarracadas, que se intitulam pomposamente de hotéis. Uma anuncia até cinema. Todas declaram conforto moderno, tal como o compreende a elementar indústria hoteleira do sertão.
......Na verdade, os quartos são simples cubículos dando todos para um corredor, como celas de convento. Ou células de prisão. Piso de tijolo, telha-vã, duas camas com colchão de capim, um pequeno quarda-roupa, uma mesa minúscula com quartinha – que é como se chama bilha ou moringa em nordestino. Do teto pende o fio com a empola da luz fraca; tudo, de tão modesto, chega a ser espartano. Em redor das casas um ar seco, uma poeira quase tão fina quanto o ar. Ao longo, o horizonte largo, a vegetação rasteira e cinzenta, árvore não se vê. Não muito longe fica Canudos, evocando a guerra e sangueira nunca esquecidas
.....Todos os hotéis anunciam os seus banheiros com água do Jorro, livres da promiscuidade do banheiro público. Realmente, embora passando pelo encanamento do hotel, a água ainda chega tão quente que dá medo. E o seu cheiro de enxofre é fortíssimo. Sai-se da torneira escaldado, desinfetado, cheirando a cachorro que tomou banho com sabão de matar pulga.
.....A fama do Jorro ainda não atingiu as classes ricas, mas grande é o seu renome entre pobres e remediados. Gente modesta das pequenas cidades sertanejas acorre às águas medicinais com a mesma fé das grã-finas hipocondríacas que vão a Poços e Caxambu. Vêm de caminhão, de jardineira, de ônibus, em velhos carros decrépitos. Acampam nos hotéis como qualquer outro “aquático”, têm seus campeonatos de biriba e suas paradas de elegância nas horas do entardecer ou do jantar. Há mesmo as adiantadas com seus “slaks” e blusões, e entre as murmurações das senhoras à fila do banho, comentava-se um grupo de pernambucanas ostentando calças de “umbigo abaixo”, versão local da “Saint-Tropez.”
E crianças. Crianças à infinidade. Uma das características das sociedade subdesenvolvida é o excesso de crianças. Parece que na Índia estão mesmo fazendo um estudo sobre a correspondência entre a dieta pobre e a faculdade reprodutora.
.....Pelos arredores não se vê sinal de cultura nem de rebanhos. Riqueza, se ali existe alguma, será debaixo do chão. Por cima tudo é liso, seco e (nesta época em que grande parte da Bahia padece uma seca de dois anos) cor-de-cinza. Deve ser difícil o abastecimento de tantos hotéis. E a prova é que o jantar, ao contrário da tradição baiana, é bem parco. Um simples arroz de galinha, dois pedaços pequenos para cada hóspede, e olhe lá. Sobremesa, um pires pequeno com doce de côco. Não havia pão à mesa. Um passageiro reclamou que a comida era pouca e foi informado de que desse graças a Deus por ainda haver aquilo: o caminhão de abastecimento dera o prego em caminho, e estava faltando tudo. Fruta não vi nenhuma, nem legumes. Também não vi uma flor. Mas lá comprei uma linda bolsa de palha de uricuri, listrada de vermelho e branco.
.....À noite, a roda de calçada se forma, captando o vento seco que tem um gosto de areia. Os hóspedes palestram e um senhor, com cara de português mas sotaque nacional, discorre. Ao seu lado, enchendo a poltrona de vime, senta-se a esposa dele, imensa mulata que em jovem devera ter sido formosa, cabelo ruim mas olhos claros, e uns modos altivos de grande dama, uma compostura no sentar, uma doçura no falar - me lembrei de Manuel Bandeira ou foi Mário? -, quando falava em mulatas imperiais. Aquela era realmente uma mulata imperial. E até agora, gorda e velha, não largava os dengues, a sandália de salto no pé pequeno, as rendas das anágua entrevista no cruzar da perna, o perfume de capim-cheiroso que a envolvia como uma aura. O senhor ao seu lado via-se que, passados tantos anos, ainda se mantinha cativo dela; - recebia-lhe as ordens - guardar um papel no bolso, emprestar os fósforos, chamar o neto -, com um sorriso submisso. Chama-a de bem. Mas era ao mesmo tempo um homem intensamente espiritual, e naquele momento explicava que a invenção do Jorro (dizia “invenção” no seu sentido arcaico, querendo significar descoberta, como se diz “invenção da Santa Cruz”), fora mandada por Deus para afirmar aos descrentes a existência do inferno. Deus manda as suas provas, os homens não querem enxergar.
.....Depois iam embora, como aquilo fosse coisa natural, como se água milagrosa viesse dum encanamento comum, colhida por mãos humanas. Ninguém pensava: de onde vem o calor? Em que chama se aquecia aquela água, saída das funduras da terra? E o enxofre, de onde é que vinha o enxofre? Qual é o lugar, debaixo do chão, onde tem fogo e tem enxofre?
Qual é o lugar, qual é?
.....Uma senhora de Feira de Santana muito magra e sem cor, que procura o Jorro para um mal de fígado, benzeu-se: Mas se a água vem do inferno, como é que pode fazer bem? Do inferno só vem coisa ruim.
- E os poderes de Deus? A senhora parece que não está contando com os poderes de Deus. Deus querendo, o que queima cura, o que perde salva. O inferno se vira em jardim, o demônio em anjo. Assim a água do Jorro
|
|